Justiça social e discurso neoliberal: problematizações sobre a base nacional comum curricular
Este artigo está licenciado com a licença: Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
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Justiça social e discurso neoliberal:
problematizações sobre a base nacional comum curricular
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Social justice and neoliberal discourse:
problematizations about national curriculum common core
Justicia social y discurso neoliberal:
problematizaciones sobre la base nacional curricular común
Simone Gonçalves da Silva
*
Juliana Mezomo Cantarelli
**
Resumo
Neste estudo, objetiva-se analisar, a partir da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), os atravessamentos do
discurso neoliberal na escola em prol da justiça social. Para tanto, a pesquisa, de abordagem qualitativa e de
cunho bibliográco, parte do entendimento de que, por meio da justiça curricular, a escola contempla todos os
aspectos da formação dos estudantes, podendo contribuir efetivamente para a justiça social. Porém, durante
a análise da política BNCC, percebeu-se que a proposta está alinhada a um projeto neoliberal que atende ao
capital e à iniciativa privada. Para a lógica neoliberal, é a economia que rege os assuntos governamentais e
transforma os indivíduos em consumidores, inclusive do ensino. Desse modo, para que a escola possa se tornar
um espaço de justiça social, é necessário, dentre outros aspectos, assumir-se como um espaço de lutas e tensões
na constituição de um projeto de educação antagônico ao vigente, ou seja, um projeto que vise à democracia,
à solidariedade e ao bem comum.
Palavras-chave: BNCC. Discurso neoliberal. Justiça curricular. Justiça social. Política educacional.
Abstract
This study aims to analyze the National Curriculum Common Core (BNCC) of the neoliberal discourse in the
school in favor of social justice. For this, the research of a qualitative and bibliographical approach starts from
the understanding that through curricular justice (TORRES SANTOMÉ, 2013) the school covers all aspects of
student education and can contribute eectively to social justice (FRASER, 2012). However, during the analysis
of the BNCC policy, it was perceived that the proposal is aligned with a neoliberal project that serves capital and
private initiative. For the neoliberal logic is the economy that government proposition and converts individuals
*
Doutora em Educação pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), pós-doutoranda na mesma instituição. É pes-
quisadora no Grupo de Pesquisa em Gestão, Currículo e Políticas Educativas vinculado ao Centro de Estudos em
Políticas Educativas: Gestão, Currículo e Trabalho Docente da Faculdade de Educação da UFPel. Brasil. ORCID: 0000-
0001-5159-2454. E-mail: silva.simonegon@gmail.com
**
Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). É docente efetiva do Instituto Federal Farrou-
pilha, lotada no campus Júlio de Castilhos. Brasil. ORCID: 0000-0003-3007-7810. E-mail: jucacantarelli@yahoo.com.br
Recebido em 31/03/2019 – Aprovado em 03/07/2019
http://dx.doi.org/10.5335/rep.v26i3.9267
Simone Gonçalves da Silva, Juliana Mezomo Cantarelli
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into consumers, including education. Thus, in order for the school to become an emplacement of social justice,
it is necessary, among other things, to assume a emplacement of struggles and tensions in the constitution of
an education project antagonistic to that in force, that is, a project aimed at democracy, solidarity and the com-
mon good.
Keywords: BNCC. Neoliberal discourse. Curricular justice. Social justice. Educational policies.
Resumen
En este estudio objetivase analizar partiendo de la Base Nacional Común Curricular- BNCC los cruzamientos del
discurso neoliberal en la escuela a favor de la justicia social. Por lo tanto, la investigación de enfoque cualitativa y
de cuño bibliográca sale del entendimiento que por medio de la justicia curricular (TORRES SANTOME, 2013) la
escuela cubre todos los aspectos de la formación de los estudiantes, pudiendo contribuir efectivamente para la
justicia social (NANCY FRASER, 2012). Sin embargo, durante el análisis de la política de BNCC, se percibió que la
propuesta está alineada con un proyecto neoliberal que atiende a iniciativas de capital privadas. Para la lógica ne-
oliberal es la economía que gobierna los asuntos gubernamentales y convierte a los individuos en consumidores,
incluso la educación. De este modo, para que la escuela pueda convertirse en un espacio de justicia social se re-
quiere entre otras, asumirse como un espacio de lucha y s tensiones en la constitución de un proyecto de educa-
ción antagonista al actual, es decir, un proyecto que tiene como objetivo democracia, solidaridad y el bien común.
Palabras clave: BNCC. Discurso neoliberal. Justicia curricular. Justicia social. Política educativa.
Introdução
O presente estudo tem como objetivo analisar, a partir da Base Nacional Co-
mum Curricular (BNCC), os atravessamentos do discurso neoliberal na escola em
prol da justiça social. Para tanto, a pesquisa, de abordagem qualitativa e de cunho
bibliográfico, parte do pressuposto de que o sistema educacional de massa foi cria-
do pelo Estado, na Europa, em meados do século XIX, com o intuito de intervir
na vida da classe trabalhadora. Com isso, a escola se transforma em um espaço
de esperança para as crianças oriundas de famílias pobres que sofrerão os efeitos
positivos e negativos das ações nela desenvolvidas (CONNEL, 2013).
Nessa perspectiva, a escola deve ter como objetivo contribuir para a justiça
social, a partir da justiça curricular, contemplando assim todos os aspectos da for-
mação dos alunos. No entanto, percebe-se a influência das políticas educacionais
neoliberais, dentre elas a proposta de uma orientação do currículo em âmbito na-
cional, iniciado em 2015, intitulada como Base Nacional Comum Curricular. Lan-
çada pelo Ministério da Educação, visa definir
[...] o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alu-
nos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, de modo
a que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento (BRASIL,
2018, p. 9, grifo do documento).
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Entretanto, a proposta da base é um tema muito polêmico. Para os defensores,
a proposta significa a possibilidade de democratizar o conhecimento, permitindo
uma equalização das desigualdades educacionais pela promoção da qualidade da
educação. Enquanto que, para os contrários, a proposta representa um silencia-
mento das vozes dos grupos subalternos e uma padronização que tem por objetivo
a concentração das ações na lógica das parcerias público-privadas, com um forte
controle sobre o currículo e o trabalho dos professores a partir da avaliação, dos
exames padronizados e dos índices métricos.
Assim, percebe-se que, no cenário contemporâneo, sob a hegemonia da orien-
tação neoliberal, muitas políticas educacionais acabam reduzindo a autonomia dos
professores e, consequentemente, da escola, bem como das práticas pedagógicas e
curriculares. Somam-se a isso as ações que colocam na meritocracia a justificati-
va para o sucesso e o fracasso individual, responsabilizando somente o estudante
pelos seus resultados. Portanto, para a lógica neoliberal, é a economia que rege os
assuntos governamentais e transforma os indivíduos em consumidores, inclusive
do próprio ensino.
Para que a escola possa se tornar um espaço de justiça social, é necessário,
dentre outros aspectos, assumir-se como um espaço de lutas e tensões. É com base
nessa última afirmativa que se pretende aprofundar esta discussão, ao problema-
tizar: como a BNCC se constitui em um discurso neoliberal que postula desafios à
noção de justiça social na educação?
Para tal, a discussão foi organizada em duas seções: a primeira situa breve-
mente as reformas e políticas educacionais e curriculares no cenário brasileiro,
como o processo de implementação da BNCC, que apresentam como pauta a produ-
ção de um currículo neoliberal (BALL, 2010). Na segunda seção, empreende-se um
exercício crítico sobre a discussão de justiça curricular de Torres Santomé (2013),
que estabelece algumas aproximações com a noção de justiça social de Nancy Fra-
ser (2012), visando compreender os sentidos em disputa na constituição das políti-
cas educacionais curriculares, especificamente a BNCC. Nas considerações finais,
são retomados os aspectos tidos como fundamentais, sobretudo no que se referem
aos possíveis desafios que a proposição de uma base nacional comum curricular
ocupa no cenário educacional contemporâneo a partir da noção de justiça social, em
sua potencialidade conceitual.
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Reformas políticas educacionais e curriculares: contextualizando a BNCC
As políticas educacionais brasileiras desencadeadas nos anos finais da década
de 1980 e no início da década de 1990 estão inseridas no contexto das reformas
baseadas em prerrogativas neoliberais. A consolidação e a implementação dessas
políticas são esforços empreendidos pela introdução de um conjunto de estratégias
a fim de supostamente solucionar os problemas da qualidade do ensino e da apren-
dizagem na educação pública.
A reforma educacional aparece fortalecida com o discurso da importância da
educação para o desenvolvimento global e também na esfera nacional. A prolifera-
ção desses discursos interessados nos problemas educacionais emerge das redes
internacionais de influência que estão cada vez mais preocupadas com um acordo
global. Os Estados nacionais passam a discutir a construção de políticas educa-
tivas que, de fato, constituem-se em uma combinação de ideias muito próximas.
As reformas administrativas e seus discursos passam a instituir uma educação
escolarizada como necessidade de mudança, que passa a justificar o empreendi-
mento das políticas educacionais. Os investimentos em educação devem alcançar
uma determinada meta de qualidade padronizada, que são obtidas com os modelos
convergentes.
O discurso da necessidade da reforma educacional está relacionado como “[...]
parte inevitável da globalização e do mercado internacional e de uma economia
cada vez mais baseada no conhecimento e que, portanto, exige mudanças radicais
na forma de organizar, conceber e desenvolver a educação” (HYPOLITO, 2010,
p. 1340). Assim, a educação vem sendo constituída no conjunto das políticas por
ações nacionais e internacionais que pretendem averiguar a atuação e o nível de
conhecimento desenvolvido nas escolas.
Com isso, as políticas educacionais surgem de um pacote de reformas elabo-
rado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)
2
.
Desde os anos de 1960, a OCDE desempenha um papel importante no cenário
mundial. É um órgão internacional, criado na França, para complementar a ges-
tão do Plano Marshall para a reconstrução da Europa após a Segunda Guerra
Mundial, com o objetivo de contribuir para o desenvolvimento econômico por meio
de assessoria aos governos sobre a administração das políticas públicas. Para ser
membro da OCDE, cada nação precisa se comprometer com a economia de merca-
do, a democracia liberal e os direitos humanos, e dentre suas metas as principais
são: aumentar o desenvolvimento econômico e contribuir com o comércio interna-
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cional. Atualmente a organização conta com a participação de 34 países (BALL,
2001; CARVALHO, 2016; LINGARD, 2016).
A partir dos anos de 1990, a OCDE começa a ter um enfoque maior no campo
educacional, preocupando-se com resultados estandardizados e comparativos inter
-
nacionais entre os países, modificando seus objetivos, que anteriormente estavam
voltados aos resultados individuais de cada país. Com o movimento dos membros da
OCDE para o desenvolvimento de uma estatística educacional comparativa inter
-
nacional, foi elaborado o relatório Education at a glance. Esse incluiu o compêndio
de dados dos países membros e a criação de indicadores, forjando assim o contexto
propício à criação do Programa para Avaliação Internacional de Estudantes (Pisa).
Segundo destacam Newman e Clarke (2012, p. 368), o Pisa serve para “[...] avaliar e
comparar desfechos educacionais entre nações participantes e tem orientado inter
-
câmbios de políticas, ansiedade comparativa e posicionamento competitivo”.
Desse modo, o Pisa, organizado pela OCDE, torna central a discussão da edu-
cação e a captura da participação dos países nos testes que ocorrem em virtude de
uma dinâmica concorrencial que no ano 2000 teve pela primeira vez sua adminis-
tração (CARVALHO, 2016; LINGARD, 2016). Percebe-se que o trabalho da OCDE
não foi sempre da mesma maneira e a sua reconfiguração, no final dos anos de
1990, está inserida no contexto de uma racionalidade neoliberal, numa sociedade
pautada pelos mecanismos de concorrência, fazendo com que a educação adquira
um papel mais central nesse cenário.
As políticas educacionais como foco de orientações internacionais, como o caso
do pacote de reformas orientado pela OCDE, tornam-se possíveis pela mobilização
de um “[...] conjunto de experts, centros estatísticos, bancos de dados, seminários
mundiais e regionais, documentos, programas de metas regionais, revistas etc.”
(GARCIA, 2010, p. 449), que também apresentam considerações importantes sobre
a educação brasileira, em caso específico. Cabe observar, como coloca Garcia (2010),
ao fazer referência a Bauman, que se vive em um mundo “glocalizado”, com pro
-
cessos diferenciados entre o contexto global e o contexto local. Contextos esses per-
meados por discursos da globalização e das políticas neoliberais desenvolvidas es-
pecialmente pelos organismos internacionais, como o Banco Mundial (BM), o Fundo
Monetário Internacional (FMI), a Organização das Nações Unidas para a Educação,
a Ciência e a Cultura (UNESCO) e a OCDE. Esses discursos nem sempre tendem a
convergir, mas possuem em comum “[...] a promessa de inclusão, progresso e desen
-
volvimento, riqueza, democracia, igualdade e qualidade de vida para todos que se
inserirem no mercado e na cultura globais” (GARCIA, 2010, p. 447).
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Nesse cenário, é preciso compreender a influência das pesquisas educacionais
internacionais sobre a educação brasileira. Para Ball (2011), nesse contexto são
alteradas as relações entre a pesquisa educacional e as políticas, determinadas por
colocações de expertises em políticas educacionais que passam a orientar as refor-
mas educacionais. Conforme Popkewitz (2004), a reforma configura-se como uma
estratégia de administração da liberdade, passando a representar a organização de
sistemas de conhecimentos de profissionais e especialistas. Alguns pesquisadores
passam a estabelecer novas relações com a política, passando a “[...] assumir novas
identidades, como ‘pesquisadores da eficácia escolar’ e ‘teóricos do gerenciamento’”
(BALL, 2011, p. 82). As pesquisas desenvolvidas nessa direção privilegiam temáti-
cas relacionadas ao projeto político e ao discurso da política e da reforma educacio-
nal neoliberal, como: qualidade, liderança, responsabilização e avaliação (BALL,
2011). Nessa direção, identificam-se as inúmeras políticas educacionais brasileiras
desencadeadas como indutoras da qualidade na educação e como instauradoras de
novas significações nos processos educativos, entre elas a BNCC.
A defesa da padronização e unificação dos processos de ensino e aprendizagem
nas escolas brasileiras, desde a educação infantil até o ensino médio, não é recen-
te no país. Isso envolve uma relação de conservação e continuidade de propostas
curriculares anteriores. Por exemplo, a condução das metas e diretrizes presentes
nas políticas educacionais brasileiras está relacionada a compromissos assumidos
em atividades internacionais, especialmente a Conferência Mundial de Educação
para Todos, organizada pela UNESCO em março de 1990 e realizada em Jom-
tien, na Tailândia. Posteriormente, a UNESCO encomenda o relatório “Educação:
um tesouro a descobrir”, elaborado em 1996, pela Comissão Internacional sobre
Educação para o século XXI. Esse relatório, conhecido internacionalmente como
Relatório Delors, delineia orientações relativas à educação básica e às necessida-
des educativas fundamentais no contexto mundial, aprofundando as reflexões de-
senvolvidas na Conferência de Jomtien. O relatório tem como objetivo apresentar
quatro pilares da educação para o desenvolvimento educacional ao longo da vida
no novo milênio: i) aprender a conhecer/aprender a aprender; ii) aprender a fazer;
iii) aprender a conviver; iv) aprender a ser (DELORS, 1996).
O documento apresentado da BNCC mostra que a proposta está amplamen-
te ancorada por legislações formuladas que garantam os princípios democráticos
desde o final dos anos 1980, conforme justificativa apresentada na sua parte in-
trodutória – seção marcos legais. A BNCC é um documento normativo que teve
sua elaboração iniciada em 2015, mas que aparece previsto desde a Constituição
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de 1988. Posteriormente à Constituição, aparecem também a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional – Lei nº 9.394/1996, as Diretrizes Curriculares Nacio-
nais, os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997), para estruturação do Sistema
Nacional de Educação, e a aprovação do Plano Nacional de Educação (2014-2024)
– Lei nº 13.005/2014. A partir disso, a BNCC justifica sua elaboração por estar arti-
culada às demais políticas educacionais e, portanto, objetiva elevar a qualidade do
ensino em todo o Brasil, ao indicar a aprendizagem esperada na educação básica,
contribuindo para a melhoria da educação evidenciada pelo baixo desempenho dos
estudantes nas avaliações externas nacionais e internacionais (BRASIL, 2018).
A BNCC foi lançada pelo Ministério da Educação, que iniciou sua elaboração
em 2015, sendo produzidas três versões de sua redação. O texto final do documento
referente à educação infantil e ao ensino fundamental foi homologado no dia 20 de
dezembro de 2017, pelo Presidente da República, Michel Temer, e pelo Ministro da
Educação, Mendonça Filho. A parte do documento referente ao ensino médio foi
entregue posteriormente, em abril de 2018, para avaliação no Conselho Nacional
de Educação (CNE), em virtude da discussão da Reforma do Ensino Médio, teve a
sua aprovação e homologação em 14 de dezembro de 2018.
Com base nessa proposta de construção de um currículo unificado das apren-
dizagens, os sistemas de ensino, os professores e os gestores de todo o país estão
sendo convocados a se mobilizar em torno do documento BNCC, que, conforme
consta, visa orientar a revisão e a elaboração dos currículos dos sistemas e das
redes de ensino de todas as escolas públicas e privadas de educação infantil, ensino
fundamental e ensino médio, em âmbito nacional. Isso, conforme o documento,
como forma de assegurar a garantia dos direitos à aprendizagem, de contribuir
com a formação dos professores, de orientar a elaboração dos recursos didáticos
e pedagógicos e de melhorar os resultados nas avaliações externas. O documento
ainda defende que a base comum tem como finalidade assegurar as orientações
dos princípios para uma formação integral, em uma sociedade democrática, justa
e inclusiva.
A BNCC gira em torno da busca de um sentido e significado de qualidade da
educação, que envolve setores do governo e da sociedade civil, por meio de insti
-
tuições e fundações. Tem-se como exemplo a afirmativa de que a proposta do do-
cumento não está conduzida somente pela orientação dos marcos legais, mas que
ganha força com o Movimento pela Base Nacional Comum, iniciado e constituído
em 2013, a partir do “Seminário Internacional Liderando Reformas Educacionais,
ocorrido nos EUA, organizado e patrocinado pela Fundação Lemann” (MACEDO,
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2014, p. 1540). O grupo não governamental vem sendo formado por pessoas e
instituições que atuam na área de educação, entre as quais: Associação Brasileira
de Avaliação Educacional (Abave); Cenpec Educação e Cultura; Comunidade Edu
-
cativa (Cedac); Consed; Fundação Lemann; Instituto Inspirare; Instituto Ayrton
Senna; Instituto Natura; Instituto Unibanco; Todos pela Educação; Undime; entre
outros
3
.
O grupo composto por instituições e profissionais ligados à educação tem como
pauta a criação de uma base nacional comum, promovendo e apoiando debates,
pesquisas e estudos e mobilizando outros atores sobre o assunto da qualidade edu-
cacional brasileira, preocupados com a investigação e apreciação das “boas práti-
cas” aos casos de excelência e sucesso de outros países que possuem um currículo
unificado. Para o grupo, a criação deste documento
[...] era um passo crucial para promover a equidade educacional e o alinhamento de ele-
mentos do sistema brasileiro: a criação de uma Base serviria como “espinha dorsal” para os
direitos de aprendizagem de cada aluno, a formação dos professores, os recursos didáticos
e as avaliações externas (MOVIMENTO PELA BASE NACIONAL COMUM, 2013, não
paginado).
Percebe-se que o discurso da necessidade da reforma educacional está relacio-
nado a uma estrutura organizacional de redes para a indução das políticas educa-
cionais, como proposta “[...] de políticas regional e global e cada vez mais um assun-
to de comércio internacional. A educação é, em vários sentidos, uma oportunidade
de negócios” (BALL, 2004, p. 1108). As reformas educacionais brasileiras têm privi-
legiado o desempenho orientado pelos resultados das políticas avaliativas, como é o
caso da discussão do Movimento pela Base Nacional Comum, que defende a criação
do documento como uma necessidade para melhorar o desempenho dos estudantes
nas avaliações externas e, consequentemente, a qualidade da educação.
As mudanças empreendidas na educação brasileira nos últimos anos, com a
construção e elaboração das principais políticas, programas e projetos educacio-
nais, são investimentos com a promessa de qualificar o sistema público educacio-
nal. Essa série de iniciativas emerge em sua maioria de agendas internacionais
que potencializam a meritocracia, a eficiência, a competitividade, a comparação e o
resultado. A denominada qualidade sustenta a ideia da participação da sociedade
como um todo rumo à construção de uma educação pública de qualidade, com ele-
vação dos resultados métricos, para um país em desenvolvimento.
Como exemplo, já citado anteriormente, tem-se o Movimento pela Base Na-
cional Comum, que envolve vários setores da sociedade em prol de uma suposta
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educação básica de qualidade para todas as crianças e os jovens brasileiros. Além
disso, posiciona-se como uma ferramenta em defesa da garantia dos direitos de
aprendizagem e de mobilização na elevação da escolarização e tem se sustentado
na importância do voluntariado, da solidariedade e da responsabilidade social; en-
tretanto, visa de fato o vasto mercado educacional e a imposição de uma agenda
neoliberal.
A discussão da BNCC requer várias considerações, sobretudo o questionamen-
to de que projeto de sociedade e de formação e qual agenda educacional pretendida
estão em curso no processo de defesa de uma BNCC. Percebe-se a inserção da
produção de um currículo neoliberal (BALL, 2010), que se sustenta em três esferas:
currículo neoliberal da reforma do setor público – lógica gerencialista no modo de
administração pública; neoliberalismo “no” currículo, com a produção do modo de
ser estudante como empreendedor capaz de gerenciar sua própria vida; e o currí-
culo como uma oportunidade de lucro, como a oferta de produtos e serviços educa-
cionais, como materiais didáticos, consultorias e atividades de formação. Portanto,
parece que no cenário brasileiro está em andamento um projeto de sociedade neoli-
beral que sustenta uma pauta educacional em defesa da BNCC, como um currículo
neoliberal que implica desafios a um projeto educacional em prol da justiça social.
BNCC e justiça social
A escola compreendida enquanto instituição social não deve apenas reprodu-
zir as ideias dominantes, ela deve atrelar o ensino às realidades sociais, para não
perder seu sentido de continuidade, mas também de ruptura dessa mesma socie-
dade, por vezes tão desigual. Nessa mesma linha, Charlot (2013) argumenta que
a escola tem o papel de difundir o conhecimento científico, mas também tem uma
função cultural e social, além da preparação do estudante para ocupar um lugar na
divisão social do trabalho. Sendo assim, a escola e sua proposta pedagógica devem
considerar a justiça social no seu cotidiano e na formação de seus alunos, refletindo
e questionando o modelo neoliberal, que transforma a educação e tudo que a ela se
relaciona numa simples oportunidade de lucro.
Destaca-se que, nessa discussão, compreende-se por justiça social o conceito
criado por Nancy Fraser (2012), que engloba a redistribuição, o reconhecimento e
a paridade de participação.
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O que é preciso é um único princípio normativo que inclua as reivindicações justificadas
quer de redistribuição, quer de reconhecimento, sem reduzir umas às outras. Com este
propósito, proponho o princípio de paridade de participação, segundo o qual a justiça requer
arranjos sociais que permitam a todos os membros (adultos) da sociedade interagir entre si
como pares (FRASER, 2002, p. 13).
Assim, segundo a autora, para se combater a injustiça econômica, da qual faz
parte a exploração do trabalho, a privação a um padrão material de vida adequado
à dignidade, além de ser obrigado a realizar um trabalho indesejado e mal pago, é
necessária a redistribuição, ou seja, alguma espécie de reestruturação político-eco-
nômica. Já, para se combater a injustiça cultural ou simbólica, que envolve desde
a dominação cultural por determinados padrões, passando pelo ocultamento e pela
invisibilidade, até o desrespeito, a difamação e a desqualificação, é necessário o
reconhecimento, isto é, alguma espécie de mudança cultural ou simbólica. Afinal,
“[...] pessoas sujeitas à injustiça cultural e à injustiça econômica necessitam de
reconhecimento e redistribuição. Necessitam de ambos para reivindicar e negar
sua especificidade” (FRASER, 2006, p. 233), pois, se a abordagem focar somente
para uma das injustiças, corre-se o risco de acabar criando ou ressaltando a outra.
Soma-se à redistribuição e ao reconhecimento a paridade participativa, que deve
estar presente em toda vida em sociedade, variando conforme o contexto de inte-
ração. “Relativamente a cada caso, devemos perguntar quem são os actores sociais
entre os quais se exige que exista paridade de participação” (FRASER, 2002, p. 19).
A partir disso, entende-se que, para que a justiça social realmente aconteça,
a contribuição da escola se torna fundamental, pois é nela que crianças e adoles-
centes passam grande parte do seu tempo, por vários anos seguidos, em busca de
formação científica, preparação para o trabalho e construção de cidadania. Sendo
assim, a justiça curricular deve se fazer presente, tornando-se uma das prioridades
do trabalho escolar, pois, nesse mundo globalizado, o neoliberalismo permeia gran-
de parte das relações sociais, políticas, culturais e econômicas, podendo influenciar
as políticas educacionais e as concepções de currículo que fazem parte da escola.
Sendo assim, entende-se que um currículo pode estar de acordo com as leis e os
preceitos estabelecidos, mas, ao mesmo tempo, não contemplar a justiça curricular.
A justiça curricular, conforme Torres Santomé (2013, p. 9),
[...] é o resultado da análise do currículo que é elaborado, colocado em ação, avaliado e
investigado levando em consideração o grau em que tudo aquilo que é decidido e feito em
sala de aula respeita e atende às necessidades e urgências de todos os grupos sociais; lhes
ajuda a ver, analisar, compreender e julgar a si próprios como pessoas éticas, solidárias,
colaborativas e co-responsáveis [sic] por um projeto de intervenção sociopolítica mais amplo
destinado a construir um mundo mais humano, justo e democrático.
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Cabe destacar que, para se alcançar a justiça curricular, entre outras coisas,
é necessário assumir um projeto educacional de transformação, comprometido po-
liticamente com a formação do cidadão crítico em relação à sociedade e ao seu
entorno, não apenas contemplando aprendizagens e informações necessárias para
o conhecimento científico. Nessa perspectiva, concordamos com o conceito de currí-
culo na escola contemporânea, que segundo Ball (2010, p. 21), é o “[...] conjunto de
experiências que molda seres humanos para transformá-los em pessoas”.
Na contemporaneidade, vislumbra-se que a BNCC emerge como uma proposta
de justiça social e curricular que visa assegurar “os direitos de aprendizagem e
desenvolvimento” (BRASIL, 2018, p. 7). Entretanto, a concepção de garantia dos
direitos de aprendizagem está vinculada a um projeto educacional neoliberal, em
que o enfoque central está em melhorar os resultados nas avaliações externas.
Conforme o documento da BNCC, a proposta de currículo nacional visa contribuir
para a melhoria da educação, tendo em vista a expectativa de elevar o desempenho
dos estudantes nas avaliações externas nacionais e internacionais.
A BNCC parece direcionar os conhecimentos a serem desenvolvidos nos pro-
cessos educacionais e, principalmente, no alinhamento com as avaliações nacionais
externas. Assim, reforça o controle e a centralidade do currículo a partir dos resul
-
tados atingidos nos exames. Essa política possui aparente caráter descentralizador,
quando se apresenta como uma orientação curricular e de gestão. Sugere que o pro
-
fessor possui a autonomia de constituir uma prática de acordo com a realidade dos
alunos, mas esta autonomia pode ser compreendida como uma autonomia imagina
-
da. O processo de organização de conteúdos e das ações e práticas docentes passa a
ser reestruturado a partir da lógica dos parâmetros e das diretrizes educacionais.
Percebe-se que a garantia dos direitos de aprendizagem está vinculada ao êxi-
to nos testes. De tal modo, parece ser essa a concepção de justiça social e curricular
presente na BNCC e que vai direcionar os conhecimentos a serem desenvolvidos
nos processos educativos pelo alinhamento com as avaliações em larga escala.
Com relação à BNCC, esta também apresenta ilusória participação ao con-
vidar a sociedade para a constituição do documento
4
. A participação defendida na
discussão da elaboração do documento se distancia das proposições de Nancy Fra-
ser (2002), pois a concepção apresentada pela proposta implica delegar as respon-
sabilidades pelo cumprimento das futuras orientações, que passaram a ser eviden-
tes em melhores resultados nas avaliações. Por exemplo, na seção de apresentação
do documento é defendido que a base é extremamente importante e que “[...] deve
ser acompanhado pela sociedade para que, em regime de colaboração, faça o país
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avançar [...], a BNCC passa agora às redes de ensino, às escolas e aos educadores.
[...] [para que], em regime de colaboração, as mudanças esperadas alcancem cada
sala de aula das escolas brasileiras” (BRASIL, 2018, p. 5), em virtude de que o
governo federal, por meio do Ministério da Educação, está fazendo a sua parte, ao
construir uma base curricular, ao mesmo tempo que denota a responsabilização
das instituições e dos professores para que a base se efetive no contexto escolar e
possa garantir os direitos de aprendizagem de todos.
A partir da homologação da BNCC, conforme o documento, as instituições
de ensino de todo o país deverão realizar a construção dos currículos “[...] com base
nas aprendizagens essenciais estabelecidas na BNCC, passando, assim, do plano
normativo propositivo para o plano da ação e da gestão curricular que envolve todo
o conjunto de decisões e ações definidoras do currículo e de sua dinâmica” (BRA-
SIL, 2018, p. 20). Então, o papel da BNCC é de orientar a produção dos currículos
nos sistemas educacionais e os professores, gestores e as famílias a colocar em ação
esse currículo em acordo com um conjunto de atividades.
Essa política educacional pode ser compreendida como descentralização das
práticas educacionais e curriculares para as autônomas. Essas preveem um Estado
mínimo por meio de outro modo de regulação social, ao estimular um novo modo
de gestão pública que devolve a autonomia institucional atrelada a um conjunto de
parcerias em rede com o setor público, privado e cooperativo. Com isso, enfatiza a
responsabilização e a participação pessoal e coletiva da sociedade civil, nas bases
do discurso empreendedor, eficiente, competitivo, para atingir os melhores resulta-
dos e elevar a qualidade educacional.
Dessa forma, esse modelo educacional neoliberal faz com que se perca “[...] no
processo a construção histórica da educação como um bem público, um direito so-
cial e que, como tal, não pode ser regulada como mercadoria, produto ou resultado
passível de mensuração entregue a especialistas em medição e números” (OLIVEI-
RA, 2015, p. 641). Assim, em função da meritocracia e da busca de resultados, a
educação como bem público e direito social de todos vai sendo ignorada e entregue
à regulação do mercado.
A BNCC se alinha à lógica neoliberal quando visa obter bons resultados e
melhores desempenhos sem necessariamente estar relacionada ao acúmulo de sa-
beres, pois, “[...] ao homologar a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a
Educação Infantil e o Ensino Fundamental, o Brasil inicia uma nova era na educa-
ção brasileira e se alinha aos melhores e mais qualificados sistemas educacionais
do mundo” (BRASIL, 2017, p. 5). Nesse sentido, entende-se que a BNCC possa
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estar reduzida a uma cultura de performatividade, visto que “[...] as convicções e
os valores já não são importantes, é o resultado que conta” (BALL, 2005, p. 21). As-
sim, a qualidade da educação está pautada pelo desempenho e rendimento escolar
como questão de performatividade, o que permite a competição entre os estudan-
tes, os professores, as escolas e, em esfera internacional, entre os países, em busca
das melhores posições nos rankings.
Para a lógica neoliberal, é a economia que rege e controla as ações e os planos
de qualquer assunto de governo, bem como as decisões dos indivíduos. Com isso,
o cidadão torna-se um mero consumidor do ensino, e começam a desaparecer as
preocupações com o outro e com o trabalho coletivo. Nessa perspectiva, o ser hu-
mano torna-se uma mercadoria ou um meio para o mercado alcançar seus próprios
objetivos (TORRES SANTOMÉ, 2013).
Constrói-se uma concepção de homem que tem como característica o “homo
economicus racional”. Segundo Frigotto (2010, p. 70),
[...] o homo economicus é, pois, o produto do sistema social capitalista. Para a economia
burguesa não interessa o homem enquanto homem, mas enquanto um conjunto de faculda-
des a serem trabalhas para que o sistema econômico possa funcionar como um mecanismo.
Esse modelo de sociedade cria um modelo de escola em que se tem como pre-
ceito que tudo é igual para todos, tornando-se vencedores aqueles que mais se dedi-
cam e se esforçam para tal. “Assume-se a ideia de que a escola é igual para todos e
de que, portanto, cada um chega onde suas capacidades e seu trabalho pessoal lhes
permite”, o que sustenta o discurso de um entendimento de justiça social baseada
em uma educação meritocrática (GOMEZ, 2007, p. 16). Frigotto (2010, p. 80) expõe
que se na sociedade o homem é livre para produzir e crescer de acordo com seu
mérito, ou seja, dependendo “[...] única e exclusivamente do esforço, da capacidade,
da iniciativa, da administração racional dos seus recursos, no mundo escolar a não
aprendizagem, a evasão, a repetência são problemas individuais”.
Se todos os indivíduos são livres, se todos no mercado de trocas podem vender e comprar o
que querem, o problema da desigualdade é culpa do indivíduo. Ou seja, se existem aqueles
que têm capital é porque se esforçaram mais, trabalharam mais, sacrificaram o lazer e
pouparam para investir. Dentro desta ótica, a sociedade capitalista não está dividida em
classes, mas sim em estratos. A estratificação decorre de uma analogia do mecanismo de
concorrência perfeita. Os indivíduos ganham seu lugar na hierarquia de estratificação se-
gundo o critério do mérito (FRIGOTTO, 2010, p. 73).
Assim, em nenhum momento as desigualdades e tudo que ela pode acarretar
são considerados para analisar o sucesso e/ou o fracasso, bem como o mérito dos
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indivíduos. Desse modo, o mérito contribui para a desresponsabilização do Estado
em relação às desigualdades, como também da escola e do trabalho dos professores,
que, muitas vezes, justificam o fracasso e a evasão escolar como desinteresse, falta
de comprometimento e responsabilidade somente do próprio aluno. Com isso, são
desconsiderados outros fatores importantes, como os contextos familiar, cultural,
econômico e social em que se encontram os alunos, além de desresponsabilizar o
Estado e os docentes do seu compromisso social (TORRES SANTOMÉ, 2003).
Nesse contexto, a escola passa a seguir os mesmos moldes da lógica empre-
sarial de eficácia, que se pretende neutra nos discursos, mas está norteada por
questões políticas e culturais. Para tal, apropria-se de palavras como performance,
competência e aprendizado ao longo da vida, entrelaçando a lógica econômica com
a escolar em prol da utilidade do saber, priorizando basicamente a preparação da
formação profissional. Assim, o aluno torna-se responsável pela busca da aprendi-
zagem e das suas escolhas e os professores passam a ser os mediadores do percurso
formativo de cada estudante. “O mercado se torna assim, no lugar do Estado a
instância mediadora vista como responsável por fixar os valores profissionais dos
indivíduos” (LAVAL, 2004, p. 57).
Segundo o documento da BNCC, a proposta de unificar as aprendizagens deve
possibilitar “[...] a superação da fragmentação radicalmente disciplinar do conheci-
mento, o estímulo à sua aplicação na vida real, a importância do contexto para dar
sentido ao que se aprende e o protagonismo do estudante em sua aprendizagem e
na construção de seu projeto de vida” (BRASIL, 2018, p. 15). A BNCC parece sus-
tentar uma proposta que pretende incentivar o pensar, o aprender e o conhecer, ao
valorizar a autonomia dos estudantes para escolhas e decisões futuras, inclusive
com relação à continuidade do processo formativo, à inserção no mercado de traba-
lho e à construção dos seus projetos de vida.
A construção da proposta de um currículo unificado está justamente em imple-
mentar um padrão previsível de aplicabilidade de comportamentos desse sujeito
aprendente, aquele que tem iniciativa, que é autogestor de sua vida e capaz de
projetar um futuro de sucesso. Alinha-se com a ideia do empreendedor que plane-
ja, projeta possibilidades existenciais e possui mais chances de sucesso na vida. A
aprendizagem, então, é um empreendimento. O investimento individual que pre-
cisa ser realizado não é em conhecer, mas em aprender para buscar os diversos
processos de formação, como obter um diploma e o permanente aperfeiçoamento
profissional.
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A discussão desenvolvida não questiona a importância da educação escolar
para a produtividade e o crescimento econômico do país, porém não se deve fazer
desse o único objetivo da escola e de sua função social. Acredita-se em um projeto
educacional que procure contribuir para o melhor desenvolvimento do cidadão e da
sua vida em sociedade.
Considerações nais
Reitera-se que este estudo teve o intuito de analisar, a partir da BNCC, os
atravessamentos do discurso neoliberal na escola em prol da justiça social. Nossa
inquietação está em compreender como esse processo de padronização e uniformi-
zação, típico de uma proposta de base curricular nacional, reforça a constituição
de uma agenda educacional neoliberal para as reformas educativas no contexto
brasileiro.
A BNCC sustenta-se no discurso da democratização dos processos de ensino
e aprendizagem, por isso a defesa de um currículo nacional como modo necessário
de garantir os direitos de aprendizagem dos estudantes brasileiros. Percebeu-se
que os discursos dessa proposta se aliam aos apelos argumentativos presentes
nos discursos relacionados com um acordo globalizado de um projeto de sociedade.
Durante a análise dos documentos oficiais, foram elencados vários excertos que
exemplificam que a proposta da base vem comtemplar e instituir uma dimensão de
currículo neoliberal.
Sendo assim, para que a escola possa contribuir com a justiça social, não se
pode submetê-la a um projeto neoliberal de negociações políticas e financeiras que
beneficiam somente o capital e a iniciativa privada, pois a escola não é uma empre-
sa e seus objetivos não podem ser os mesmos. Defende-se a garantia da educação
crítica e de qualidade e que proporcione a construção plena da cidadania.
Percebe-se que há um longo caminho a percorrer. Caminho de luta por uma
educação que real e verdadeiramente contribua com a justiça social, proporcionan-
do a todos os estudantes do país a oportunidade de se construir como um ser huma-
no livre não só de direito, mas também de fato. Liberdade essa que vai muito além
de um regime político, mas que se fundamenta na oportunidade de aprender na
escola a discernir criticamente fatos e acontecimentos que envolvem não somente
a vida do indivíduo isoladamente, mas a vida da sociedade em geral.
Desse modo,
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[...] o desafio que se impõe ás escolas públicas e a outras instituições de educação é o de pro-
mover um contexto para o desenvolvimento de outros meios de tornar-se alguém – modos
mais fortalecedores do indivíduo e da coletividade, e mais condizentes com uma concepção
democrática de eu e de comunidade (APPLE; CARLSON, 2003, p. 35).
Para tal, consideramos que conhecer, debater e discutir as políticas educacio-
nais sob o enfoque da justiça social, em sua potencialidade conceitual, são funda-
mentais para se pensar e articular resistências contra esses discursos reformado-
res neoliberais, que têm não só regulado, mas também controlado o cenário educa-
cional contemporâneo. Acredita-se que para a escola se tornar um espaço de justiça
social é necessário que se tenha consciência da importância da justiça curricular,
pois por meio dela poderemos ter clareza da necessidade de se lutar por um projeto
de educação antagônico ao vigente, que é, por vezes, tão injusto e desigual.
Afinal, se não formos capazes de construir outras perspectivas mais democrá-
ticas, participativas e humanas para o futuro educacional dos estudantes, outras
forças menos democráticas continuarão a fazê-lo, como é a imposição de um cur-
rículo nacional. Desse modo, continuaremos vivendo em uma sociedade em que o
mérito é o discurso utilizado pela classe dominante para, disfarçadamente, justifi-
car não somente o descaso pelas minorias, mas também as desigualdades sociais.
Notas
1
O presente estudo contou com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
2
O Brasil não faz parte da OCDE, mas desenvolve processos de cooperação desde 1990 e participa das
avaliações na área da educação, como o Pisa, que é de responsabilidade do Instituto Nacional de Estudos
e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (HYPOLITO, 2010).
3
Para maiores informações, acessar: http://movimentopelabase.org.br/quem-somos/.
4
Para aprofundar a discussão sobre esse procedimento denominado pelo Ministério da Educação como de-
mocrático, em que afirma ter privilegiado o debate, as negociações e as contribuições entre os diversos
atores da sociedade envolvidos no processo de produção e elaboração dessa política curricular, sugere-se a
leitura do texto de Avelar e Ball (2017).
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